Tirei a tampa de rolha, e chacoalhei a garrafa até que muito do líquido estava no chão, junto com uma das cobras. Olhei para ela, mas rejeitei-a. Não era essa a cobra que queria. Como não queria que o galpão, que desde o começo sabia ser do meu tio, estivesse sujo, usei a água de minha caneca para limpar a sujeira. Não foi preciso muita coisa, apenas um simples movimento de jogar o líquido límpido no chão fez com que líquido sujo e cobra desaparecessem. Voltei a encher a caneca. Não me lembro quando, onde, ou quanto tempo levou, sei apenas estar de volta na sala, com a caneca novamente cheia em mãos. Pegarei novamente a garrafa, que apesar do movimento anterior, ainda está cheia de líquido, e repeti a ação. Mais uma vez não era uma cobra da aparência que desejava, volto a limpar, e volto a jogar o líquido no chão. De novo, e de novo, repito a ação,. Percebo, porém, que agora não farei mais movimentos inteiros, o que meus olhos viram são apenas flashes de movimento: jogar o líquido, rejeitar cobra, limpar, rejeitar cobra, limpar, jogar líquido, jogar líquido, limpar, tudo isso com a fúria de um ferreiro que não consegue martelar uma espada do jeito correto. Uma expressão de raiva constante no rosto, e o Sol do meio dia (está quente) ilumina a sala do exato mesmo jeito, sem se mover com o tempo.
Logo, ou pelo menos é a impressão que tenho, apenas uma cobra sobra na garrafa, que ainda está totalmente cheia do líquido. Depois de limpar a cobra anterior, meu tio chega. Mesmo o chão estando totalmente limpo, ele parece saber o que aconteceu, mas continua com uma expressão de dúvida, embora o ar à sua volta pareça debochador. Explico-lhe os motivos, e o que aconteceu, embora tenha a impressão de não ter lhe dito nada. Ele entende perfeitamente. Três tapinhas no ombro, um sorriso no rosto, ele sai pela única porta, e, mesmo não tendo dito nada, sei que me chama para segui-lo. Vou em sua direção, mas antes, dirijo-me à cobra que restou. Aproximo o rosto da garrafa na prateleira solitária, e encaro a cobra, que parece também estar olhando pra mim. Porém, diferente da expressão apática que todas as cobras tinham desde o começo, agora esta estava triste. Talvez cobras não tenham exatamente expressões, mas ela estava triste, tenho absoluta certeza disso. Ela morre. Mesmo que estivessem dentro do líquido, e tendo sido furiuosamente chacoalhadas, até então as cobras continuavam vivas, mas agora, esta morrera. Continuei olhando para o corpo em desgraça, que morreu triste, e só. Ao concluir isso, percebo que não há mais cobra dentro da garrafa. Aquilo pra que olho é meu próprio rosto, refletido na superfície calma e inerte da garrafa cheia de líquido, e apenas disso.