Foi o que eu ouvi um certo senhor falar no ônibus, enquanto tentava decifrar as palavras fora de ordem no e-book de Dois Irmãos, em meio ao calor e à dor de cabeça. Nada de mais, pensei. Apenas mais uma pessoa com uma opinião -nem tão- própria quanto ao que devia acontecer. Ignorei, e voltei a ler.
"Oh, glória!"
...
"Oh, glória!"
...
"Oh, glória!"
...
Foi o que o mesmo senhor repetiu, enquanto a pessoa com quem conversava, que por acaso estava no banco ao lado, permaneceu em silêncio.
"Porque eu sou filho do rei! Eu sou príncipe! Sou filho de Deus! Ninguém tem o direito de fazer alguma coisa contra mim!" Ele diz, sem motivo externo algum, tempo depois.
Discursos e mais discursos sobre como apenas Deus pode fazer o bem, em voz desnecessariamente alta, desviavam meus pensamentos do livro a um ponto em que desisti de ler, e passei a apenas fitar distraidamente a já conhecida paisagem da janela do ônibus.
Próximo à Ponte das Bandeiras, uma mulher, e um filho com síndrome de down, passam pelo corredor, em direção à porta.
O senhor diz, ao garoto: "Você é muito bonito, sabia?", então, olha para a mãe e diz: "Tem fé, e deixa Jesus trabalhar no seu coração, que esse problema dele vai acabar"
Depois que os dois saíram, ele vira-se ao seu companheiro, e diz: "Viu como ele é bonito? Tem que ter fé, que esse mal, esse demônio nele, vai embora!"
Foi aí, que pus-me a pensar: O garoto, realmente, tinha um problema? Ele pode ser considerado um demônio por ter uma deformação que não é sua culpa? Ele precisa do dó de um desconhecido?
Pessoas como esse homem no metrô não têm fé. Em nada. Eles reafirmam-se, e reafirmam-se de novo, em voz alta, para que aquilo que eles gostariam de acreditar possa se tornar realidade. Quem acredita em algo, seja no que for, não precisa reafirmar a si mesmo, nem tentar desesperadamente, como esse homem no ônibus, convencer os outros de sua crença, apenas acredita.
"Sabe aquela mulheres que se dizem crente? Dá uma boa pisada no pé delas pra ver se é crente mesmo! Pra ver se ela não vira uma bofetada na sua cara!" Ele disse, pouco antes de sair.
Alguém que se diz crente, por acreditar, não deveria revidar uma agressão? Isso a torna menos crente? Mais uma vez, a reafirmação volta, desta vez acusatória, para que ele tente convencer a si mesmo de sua fé.
São pessoas como essas que tornaram e ainda tornam a vida de muitas outras mais difíceis, menos aceitáveis, porque, sabe, aqueles com problemas mentais involuntários têm demônios em seus corpos.
A fé não está no que fazemos ou dizemos. Está dentro de nós
"Se eu fosse um ossinho e soubesse girar, girava o dia todo até o mundo acabar..."