Aquela mulher alienada que diz "ela ficou tanto tempo pra escrever ISSO?" não conseguer ver o esforço que aquela outra pessoa teve para se expressar, mesmo levando em conta o desincentivo para escrever, em pró da fala, mesmo não sendo bem escrito, mesmo não sendo belo, marcante, impactante, é a representação de um sentimento. Ela nega porque não compreende. Ela nega porque não empatiza, porque seus olhos estão cegos por seu próprio mundo habituado, por seu trabalho repetitivo, pelas multidões de olhar morto e sem emoção, presos à rotina. Não indagam, não pensam, não criam, apenas vivem, são levadas pelos líderes que lhes impões um estilo, uma visão. São levadas por um metrô velho e desconfortável, mas que leva, e que cumpre seu dever. Um metrô como a multidão. Ele pode se encher de todo tipo de gente imunda, de mercadoria roubada, de mendigos, de empresários, de estudantes, de trabalhadores, de poetas, de pensadores, mas no fim, mesmo que essas pessoas não estivessem sendo cuspidas para fora em toda estação, se estivesse vazio, sem nem mesmo ar dentro dele para que qualquer coisa respire, não faz diferença.
Às vezes a porta trava, gente atrasada, gente descuidada, gente vândala. Também não faz diferença, só pra quem percebe que precisa que ele se mova. E às vezes só percebe quando ele se atrasa, quando o padrão se quebra, quando a rotina é socada, os olhos cheios de nada, fechados para si próprios se abrem e vêem que algo naõ está certo. Mas ainda assim, eles não podem, mesmo depois de perceberem, impedir que o metrô se atrase, não está em seu poder, não ousam, porque só quando todos percebem é que podem impedi-lo, mas não podem. E se fecham, e não pensam, e não indagam, e não vêem. E aí negam, negam, negam, negam e negam. Negam a si próprios, negam ao seu poder, negam sua mente, negam aqueles ao seu lado, negam a carta cuidadosamente dobrada em forma de coração por uma menina, negam porque não empatizam, e olham com seus olhos inúteis e sem essência para algum qualquer que, quem sabe, poderia deixar de negar, e perguntam numa voz atônita, porém sem base, apenas repetindo algo que ouviu alguém dizer, e nunca se preocuparam em pensar em seu por quê: "Deu pra ler as coisas dos outros, é?", e continua olhando, boca aberta, olhos em um ponto fixo no centro de seu rosto, e nenhuma palavra sai de sua boca, moldada por sua língua e dentes sujos, só para então começar a ler um trecho, em voz alta, para que qualquer um a seu lado possa ouvi-la.
Neste momento, uma faísca, um flash de razão lhe passou pela mente, e ela viu que seu valor não tinha fundamento. Mas ninguém ouviu, porque todos estão mortos. Estão mortos e não vêem. Estão mortos e negam. Talvez aquela pessoa, a dois passos de distância, que tentava ver do que se tratava a carta, consiga definir algumas palavras misturadas ao barulho alto e incessante do metrô andando. E aí o flash acaba, e aquela mulher volta a seu mundo, suas regras impostas são reestabelecidas, a porta abre, ela retorna a sua rotina, seu renascimento acaba, ela volta para a morte, e foi morta pela sociedade, foi morta por si mesma. Ela nega por ter sido negada.
Por quê, no reino de um Deus que apenas aqueles cujos corpos foram dilacerados ao ponto em que sua morte acaba, porque seu corpo também morreu, e a morte da morte nada menos é que a vida, podem dizer se existe ou não, aquela velhinha não viu o lugar vazio no ônibus cheio, que lhe foi concedido por alguém que viu a necessidade de que ela estivesse sentada, mesmo que essa outra precisasse, para isso, ficar em pé, seu corpo à mercê da inércia e em contato com tantos corpos estranhos? Mesmo que tivesse passado ao lado do lugar vazio, por que não o viu? Ela está morta. e ela não vê. Não vê porque nega. Nega por estar morta. E a morte não a deixa ver.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário